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Cordel: Entrevista com o Matuto


A obra: Um exemplo bem humorado de literatura de cordel, Entrevista com o Matuto é uma crítica não só á realidade que nos cerca, mas acima de tudo uma crítica à passividade e o medo de dizer, discutir, argumentar e modificar essa realidade.




Houve numa certa feita
Um causo de dar arrelia
Depois que vi esta história
Danei a fazer poesia
Prá contar prá vozmicês
O que houve aquele dia


Um estudante de jornalismo
Das bandas da capitá
Quis fazer documentário
Com nosso modo de pensar
Procurou Toin Matuto
Pru mode entrevistar


Toin Matuto que era mala
Esperto por natureza
Perguntou pra quê que era
Toda aquela estranheza
E pediu que o playboy falasse
Logo tudo com franqueza


O estudante lhe explicou
Que era coisa sem desfecho
Ele só ia gravar
Suas palavras num despejo
Pois o documentário era
Sobre a opinião do sertanejo


A entrevista era simples
Era só ele responder
O que achava do sistema
O que devia ocorrer
O que devia mudar
O que devia ceder


Toin Matuto, mei cabreiro
Perguntou-lhe num sussurrar
Posso mesmo responder
Sem mesmo me amedrontar
A policia não vai me prender?
O governo não vai me matar?


O estudante lhe sorriu
Disse que não percebia
Algum motivo pra isso
Acontecer-lhe algum dia
Pois pelo amor de Deus!
O que é que ele diria?!


Toin Matuto aceitou
Fazer aquela presepada
Mas por azar do playboy
A coisa ficou engraçada
Já no início deu zebra
Pois já começava errada


Disse o entrevistador
Estou aqui com Toin Matuto
Que mesmo semi-analfabeto
Conhece e entende de tudo
Vamos ouvir a opinião
Do sertanejo resoluto


Pra começo de conversa
Disse virado na desgraça
Semi-analfabeto é você!
É você e sua raça!
Sou é analfabeto todo!
Num há conta que eu faça!


E vou logo lhe dizendo
Já que é mesmo pra dizer
O que penso do sistema
Já que não vão me prender
Não é mesmo todo dia
Que essa chance é de se ter


Começando na política
Ô racinha de ladrão
Quando tu vota e confia
O cabra tá na corrupção
E a cifra que se ouve falar
É só de milhão em milhão


O cabra vota num sujeito
De ideal Socialista
Que quando chega ao poder
Mostra-se um reformista
E se diz social democrata
Eu diria Capitalista


E pra que paga imposto?
Melhor é com a própria mão
Fazer praça e cemitério
Cacimba em mutirão
É só juntar o dinheiro
Pra cuidar do nosso chão


Repara se eu não tô certo
Assim não tem como roubar
Pois agente mesmo pega o dinheiro
Pra compra do materiá
Aí nós juntamo o povo
E começamo a trabaiá


E esse negócio de pagar água?!
Isso é negócio de demente!
A água é nossa, vem da terra
Da pedra ou da nascente
Pro sustento do bicho
Da planta e de toda gente


Pra num falar de vender
Terra a preço de ouro
Matando o povo de fome
Roubando seu maior tesouro
Impede o homem do campo
Ter leite, carne e couro


Sem tratamento de esgoto
Polui-se em qualquer lugar
Penera-se só um pouquinho
Depois já da pra despejar
Mais um emissário submarino
Jogando esgoto no mar


E o nome do aeroporto
De nossa querida Salvador
Que lembrava a luta do povo
Por liberdade e valor
Hoje o novo nome
É o do filho de um senador


Agora vê se ta certo
Marcar horário consciente
Bem marcado, bem certinho
Num bom hospital decente
Para só ser atendido
Após o oitavo paciente!


Sair de lá revortado
Pra pegar um coletivo
E mesmo desempregado
Ou mesmo estudante liso
Ou tu paga, ou tu fica
E calado tu sai vivo


Aí tu junta as moedas
E senta bem paciente
No normal você vai em pé
Aí entra um diabo de um crente
E tu ainda é obrigado
A ouvir o pobre inocente


Esse tal proselitismo
Devia ser proibido
Pois não temo obrigação
De ouvir ensandecido
Apôis quem quiser rezar
Caminho da igreja é conhecido


Aí tu chega em casa
Tua morada de aluguel
Esperando ser aquele
O seu pedacinho de céu
Mas tu ainda tem que ouvir
Uma torre de babel


Vizinho da frente é Arrocha
Degeneração da seresta
Vizinho de traz é Calípso
E ele jura que presta
Vizinho de um lado é um crente
Me diga o que ainda me resta!


O do outro lado é pior
Pois não respeita minha labuta
Quando chego morto em casa
Em todo bairro se escuta
Bradando a toda altura
Aquele pagode de puta!


Se pensas que estou terminando
Apôis estou a começar
Veja o fio de Herculano
Levou uma pisa de matar
A puliça pegou o menino
Com um cigarrim de apertar


Agora veja seu repórte
Como o mundo ta virado
O Crack matando gente
E os puliça ocupado
Batendo em adolescente
Que tava queimando mato




Esse mato eu conheço
Mas desde pequenininho
É coisa boba, sem perigo
Já dei até uns traguinho
O problema são as drogas
Isso sim não tem caminho


E facurdade camarada?!
Ah, essa é bom cê gravar
Cuma é que pode o matuto
Pudê até ela chegar
Se o ensino é uma porquera
Aqui ou na capitá?!


Cumpadi Mané Tiburso
Diz que viu na televisão
Que na Orópa é diferente
Pra entrar não tem eleição
Quando tu terminas o estudo
Vestibular não existe não


Diz que lá remédio é de graça
Escola e computador
O cabra ganha dinheiro
Fazendo seja o que for
Seja branco ou amarelo
Preto, pobre ou cantador


Aliás, no meu saber
O problema ta é no dinheiro
Se esta merda for abolida
Conserta o Brasil inteiro
Voltando o sistema de troca
Evita-se o caloteiro


Cadeia é uma vergonha
Facurdade de ladrão
O ladrão sai assassino
Assassino sai capitão
Pois ou entra pra puliça
Ou volta á vida de cão

Bota os cabra pra produzir!
Tirar do chão alimento
Forjar no aço utensílio
Esculpir na madeira o talento
Aprender a se virar
Pois roubar não é sustento




Aí o povo faz fila
E lota um estádio inteiro
Vendo um monte de macho correndo
Atrás de uma bola o dia inteiro
E quando sai do estádio
Ocorre até tiroteio


Agora veja seu moço
Se eu não tenho mesmo razão
Um monte de babaca e idiota
Brigando em mutirão
Pra protestar se amofina
Quem dirá revolução


Mas se tem um trio elétrico
Aí a putaria é dobrada
Lota mais que visita de Papa
Que, aliás, é a escória sagrada
Escroto capitalista
Da santa igreja malvada


E o exército brasileiro
Que se julga invencível
Levou três pisas dos matutos
De Canudos inesquecível
E hoje no Haiti
Espalha o terror cível


E ainda baixa a cabeça
Para um velho conhecido
Presidente George Bush
Nazista enlouquecido
Esposo de Toni Blair
Seu amante mais querido


Tem dois cabra logo aqui
Na América Latina
Dando exemplo de atitude
Caindo logo pra cima
Enfrentando os inimigo
E promovendo uma faxina


Um momento por favor!
Pediu então o estudante
Deixe-me falar com o senhor
Antes que o senhor se espante
A promessa que lhe fiz
Não posso levar adiante




Se o que diz for veiculado
Garanto que há o que temer
Depois do primeiro parágrafo
Não sei o que pode ocorrer
Eu só sei de uma coisa
Quem vai preso é eu e você!


Peraí que inda tem mais
Meu caro amigo repórte
Tu disse pra eu falar
Tudinho sem medo da morte
Espero que este apareio
Nem uma palavra me corte


O preconceito é outro tema
Que me deixa arreliado
O branco oprime o negro
O índio e o “aziádo”
Mas não é só o povo branco
Que insiste no caminho errado


O negro também se organiza
Em grupos e movimentos
Nos quais branco não entra
E inda ouve xingamento
Não adianta ser militante
Se for branco ou sardento


E o fumante educado?
Apesar de ser fumante
Não fuma em ambiente fechado
Em respeito ao não fumante
Em respeito á criança
Ao idoso e á gestante


Mesmo assim é hostilizado
Pelo idiota não fumante
A fumaça passa longe
Mas a cara é ultrajante
E ainda diz piadinha
É o preconceito ao fumante


E o carro movido a água
Elétrico, purificado?
E a energia solar
Ao alcance do desempregado?
E a Caprinocultura
Com incentivo do Estado?




Neste momento o estudante
Temendo ser retaliado
Pelo discurso letal
Inocente e detalhado
Desligou o aparelho
Onde estava tudo gravado


Falou a Toin Matuto
Que aquilo já estava demais
Pediu que ele elaborasse
Um finalzinho de paz
Ligou novamente o aparelho
E pôs-se a falar o rapaz


Este foi o desabafo
De um pobre matuto do mato
Um pobre ignorante
Com seu modo de vida nato
Retrato da inconsciência
Que o nordeste é relegado


Agora suas palavras finais
Senhor Toin Matuto
O que tens pra finalizar
Teu discurso tão sisudo
(sussurrou por traz da câmera)
Fale de paz ou fique mudo!


Toin então pegou ar
E falou bem docemente
Ignorante é tua mãe
O teu pai certamente
Da próxima vez que vier
Explique mais claramente


Instrua-me a falar
De passarim e céu azul
De flores e borboletas
Gravatá, mandacaru
E só pra finalizar
Um pacífico TUMÁ NO CÚ!